terça-feira, 20 de dezembro de 2011

1950

REVISTA LIVERTAS
ANO II – FEVEREIRO DE 1950 – NÚMERO 8
DA FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE DO NOSSO SOLDADO

V – O POLICIAL E O MEIO (Continuação )
Ten. Cel. Manoel José de Almeida

Vamos prosseguir o estudo do policial e o meio. Antes, porém, um paretense para uma advertência. Os dias que vivemos se caracterizam pelo sentido evolutivo das cousas em quase todos os setores da atividade humana. E esta evolução se faz sentir num crescendo tão espantoso, a ponto de tornar comum a comparação de todo o esforço de adaptação do homem sobre a Terra ao progresso dos últimos 50 anos da nossa época. Que haja nessa apreciação algum exagero, posto que, no campo do espírito não observamos a mesma velocidade dos fatos da ciência, não discutimos. Mas a visão panorâmica deste momento histórico não deixa dúvidas quanto aos impressionantes efeitos da ciclópicas realizações desta primeira metade do século. Emergindo da pesada atmosfera de um período de grandes caldeamentos de idéias, vemos os indivíduos mais fortes e mais arrojados, lançarem-se à tormentosa luta, em busca da Canaã sonhada. Todos avançam, uns com destino certo, outros se julgando certos e outros, ainda, na avalanche que se forma. Reparem no homem de ontem e no de hoje. Dentro do mesmo século tudo vai vertiginosamente. O professor e seu irmão mais jovem - o sociólogo - dispensaram os alunos para o recreio diário e, de regresso à sala de aula, surpreenderam-se sendo argüidos pelos moços, que estudaram na cartilha de Engels, Marx e Spencer, mas que depois tiveram um encontro providencial com Bloy, Peguy e Maritain; o poeta aparou a cabeleira e se transformou em funcionário público, o médico passou a receitar preparados, mas vai penetrando os difíceis domínios da bioquímica; o trabalhador ouve rádio, discute as leis do trabalho e comenta a política do Kremlin; e o soldado... Imutável soldado de todos os tempos, trocou a durindana por uma pequena esfera que traz oculta numa das mãos: a bomba atômica!
O tempo marcha! A polícia observa o movimento do imenso carrossel e receia que com essa celeridade venha ela ficar sozinha na estrada... Procura justificar o seu atraso com a incompreensão de todos para consigo... Ninguém lhe aprecia a ação, os seus feitos são sempre odiosos. Não obstante, ainda raciocina. Árvore de boa linhagem que é, compreende que não deve definhar-se em queixumes, nem deixar que seu ânimo baqueie. Urge acompanhar a marcha do tempo, incorporando-se ao grande comboio como um dos seus valores positivos. Para quem sai atrasado, longo será o percurso mas ao cabo, serão as canseiras regiamente compensadas. Fechemos esse parêntese.
Tratando da matéria que se prende às relações do policial com o meio, a ninguém passará desapercebida a recíproca intolerância ainda existente entre o civil e o soldado. O fenômeno merece a nossa atenção e, no que nos toca, seria justo assestássemos sobre ele todo o poder da educação moral. Essa velha rixa existe desde remotas quadras. É um mal tradicional que tem suas origens na diversidade dos interesses das classes, encontra base no fraco padrão de cultura do meio e , certamente, está também ligado à lembrança de certos feitos do homem posto a serviço da ordem.
Segundo observa grande pedagogo, que já tivemos a oportunidade de citar nestes trabalhos, a maior parte dos desentendimentos e conflitos entre os homens provém de que eles não vivem o mesmo universo, isto é a projeção do próprio “eu” que cada um cuidadosamente vigia e defende contra a intromissão de outrem. Cada qual se apega ao próprio interesse e nada realiza em prol de um entendimento em bases racionais.
Observamos isso nos mais ligeiros contatos da vida. Uma simples conversa é ensejo de interessante estudo. Há pessoas que põem em jogo todos os recursos para despertar a atenção dos outros sobre si. Para estas, os demais constituem apenas auditório, que as deve aplaudir ou ouvir em silencio. Do outro lado, porém a cousa é vista por prisma diverso: o pretenso totalizador das atenções não passa de um pairador, tão mais insuportável quanto mais fala. Se quisermos um outro bom exemplo, apanhemos, no ato da transação, um vendedor e um comprador e analisemos as respectivas reações, no gráfico descrito pelas pretensões de cada um.
O homem simples do interior, o morador lá da ponta da rua, faz sua festa, onde bebe sua cachacinha, e às vezes, dá ao gatilho de sua garrucha dois canos, sentindo-se ator central de um magnífico drama que o empolga.
O soldado, findo o período de instrução, o seu estágio na sede da unidade, onde a todos deve obediência e respeito, vai para o destacamento desejoso de uma oportunidade que o fará sentir a sua autoridade sobre alguém. É a imperiosa necessidade de uma compensação. A Lei deve ser cumprida e ele está de posse das credenciais de agente de autoridade!
O choque desses dois seres é inevitável. Para o civil, o policial é um entrave, é o verdugo onipresente, a invadir-lhe os sagrados domínios onde imperam desconhecidos anseios. Para o policial o paisano é o eterno recalcitrante sempre fazendo jus a um ensinamento, é o cara de volta e meia, incurso, não nas penas da Lei, mas por desrespeito ao mais pitoresco tribunal, em que ele, policial figura como o único juiz. E como policial e paisano normalmente não vivem distantes, posto que primeiro exista em função das necessidades do segundo, são freqüentes e inevitáveis as invasões de universos, são repetidos os conflitos.
Considerando que o universo da classe superpõe o universo individual, reforçando-o, vemos aí, talvez, a causa mais ponderável das lamentáveis desinteligências entre os dois importantes grupos sociais.
Citemos, a propósito o que nos narrou íntegra autoridade de nossa Polícia Civil. Em Pompéu, cidade oeste mineira, um cabo de nossa corporação, moço forte, bem aparentado e ainda imberbe, aborda a dois indivíduos que discutiam acaloradamente e procura persuadí-los a desistir da contenda. A reação não se fez esperar. Teve aquela pronta repulsa de ambas as partes! Advertiram-no de que aquela não era questão em que a Polícia se devia intrometer. O cão, no entanto não se deu por convencido e quis levar avante o cumprimento do dever, evitando as conseqüências do conflito já iniciado. Mais uma vez foi aconselhado pelos homens a seguir o seu caminho, deixando-os “em paz”... E como fosse o militar suficientemente equilibrado, não se deixando levar pelo absurdo da idéia que lhe queriam incutir, um dos contendores virou-se para ele, apontou-lhe uma garrucha e o tiro partiu. Cai mortalmente ferido o inditoso graduado.
Outro fato, este narrado por um camarada nosso. Na cidade X, o soldado do destacamento, sabedor de que ocorrera um atrito entre o delegado especial e certo advogado, foi a noite ao encontro do causídico, dando-lhe uma tremenda surra. No dia seguinte, sem qualquer sentimento de culta, foi anunciar ao oficial o “serviço”, perfeitamente enquadrado nas posturas regulamentares! A vítima era pusilânime e fez silêncio sobre o fato, mas até hoje supõe ter sido agredido por ordem daquela autoridade.
Como poderemos compreender fenômenos tão estranhos senão penetrando no âmago dos fatos, analisando as suas verdadeiras causas? Em ambos os casos acima referidos releva notar a idiossincrasia mutua entre as classes. No primeiro exemplo, vemos como a tradicional rivalidade entre os grupos superou os ódios de que estavam possuídos, dois indivíduos empenhados em luta de vida ou de morte. No segundo, vemos o policial que desejou ser leal, ou melhor, agradável ao superior e agiu pelos ditames de uma consciência de classe alicerçada em bases falsas.
Vários oficiais nos asseveram que o emprego de desnecessária e excessiva violência, por parte do nosso soldado, constitui ainda quase um característico do seu modo de agir. Afirmam que por todos os lados tem observado essa abusiva e reprovável praxe.
Por outro lado, do interior vem noticias de injustiças de toda sorte de que é vitima o modesto soldado do destacamento. Socialmente colocado em situação das mais humildes entre os moradores da terra, esse homem não pode aspirar a um padrão de vida compatível com a dignidade de sua função. E não apenas as dificuldades financeiras constituem obstáculos a isso. Ele está em verdade sujeito a injunções e a sanções tais que a melhor defesa a seu alcance é mesmo o isolamento. Ali, via de regra, é o soldado o mais leve joguete em mãos do chefe político. Não pode fazer uma amizade. Andou mal se, em prova de gratidão, deu ao seu vendeiro o filho para batizar. O vendeiro tem sua posição partidária na localidade e o soldado não se pode definir... Se acaso chamou atenção do peralta, filho de um correligionário de prestígio incorreu em falta grave, deve com urgência ser afastado da localidade...
A generalização dos conceitos, no entanto, oferece sérios perigos na apreciação dos fatos da vida e quase sempre conduz a caminho errado. Está em oposição à prudência que deve presidir aos atos do homem. O soldado que se embriagou, promoveu desordens ou no exercício de suas funções praticou violência, parece não possuir identidade, sua personalidade sintetiza a coletividade de que faz parte. Ele é o Polícia Militar e para a sua corporação atrai no julgamento comum, o conceito do ato irregular. O civil que covardemente abateu o policial em serviço, também é um ser indeterminado, resumindo a sociedade toda ou o meio em que vive na apreciação do policial. Daí a predisposição mútua, o acirramento de ânimos, a reprodução dos conflitos.
A evolução do civil se processa no mesmo sistema de evolução do meio em que ele vive, evolução esta, muito lenta, subordinada a demorado processo de interação e sedimentação. Opera-se entre multidões heterogêneas. O mesmo á não ocorre no caso da Polícia, instituição homogênea, organizada com objetivos definidos, na tradição, nos costumes e nas leis. As relações inter-mentais se operam no sentido da intenção de todos os membros de atingir determinado fim. Não obstante, não supõe essa circunstância a existência de um tapete de rosas no caminho a ser trilhado. Requer grande esforço, aliás, perfeitamente compensado, pois, a realização desse empreendimento significa fator de progresso social.
Mais uma vez repitamos: uma polícia educada pode concorrer para a evolução do meio em que labora. “Em pouco tempo uma polícia transforma um povo e lhe inculca o senso da disciplina necessária às grandes Nações”.
É uma Polícia que assim sente e desempenha suas atribuições não se limita a ver a cousa pelas generalidades; não se basta com o simples conhecimento dos preceitos legais; não deseja ver a sua missão nivelada ao papel do homem que apenas vigia como sentinela, na defesa de preconceitos sociais de fundo mais ou menos egoístico. Antes de estabelecer a equação da responsabilidade dos indivíduos, envidará esforços no sentido de melhor compreendê-los, atento à complexidade de sua constituição, num esforço antecipado para realizar aquilo que fará a Polícia do futuro, isto é, considerar o homem todo, sujeito às leis de causa e efeito e protegido por uma razão que o beneficia na relação da claridade que a penetra.
Essa polícia estabelecerá um novo valor pedagógico como base da formação profissional de seus servidores: proteção, substituindo fiscalização.
A Polícia Militar – vivendo harmonicamente na sua própria intimidade – traçara com as cores da realidade as principais diretrizes nesta admirável senda do bem servir ao próximo. Para isso, a nossa disciplina deve caracterizar-se por uma perfeita tessitura de compreensão, desde o servido de mais modesta situação ao mais graduado posto, surgindo no final um edifício que assim constituído será um magnífico instrumento a serviço da evolução da coletividade.
Cumpre-nos, pois, agir no sentido dessa evolução através da melhor formação dos homens postos a serviço da Ordem Pública. Temos uma parcela deles sob as nossas ordens e respondemos pela sua educação. Para melhor formá-los dentro desse novel objetivo procuremos ter conhecimento dos fenômenos e fatos sociais do meio, das virtudes e dos defeitos do povo, em cujo contato vai o nosso subordinado lidar.
Situações embaraçosas, de que as autoridades policiais nem sempre podem se sair dignamente tem origem muitas vezes na falta de compreensão e de conhecimentos profissionais. O homem mal preparado sentirá o ridículo de sua situação, sempre que houver um problema sério a resolver. Via de regra, na impossibilidade de melhor solução, vendo periclitar o princípio da autoridade que a sua missão encarna, recorre à prática da violência, torna-se o homem valente.
Num dos últimos congressos do Centro de Criminologia de São Paulo, tivemos a oportunidade de ouvir a tese defendida por um estudante focalizando o conceito injusto em que a Polícia, de modo geral, é tida por parte da sociedade. Tivemos ocasião de comentar o trabalho em relatório que apresentamos com referência naquele certame. Louvamos os bons propósitos do seu autor, mas tivemos que opor formal restrição ao espírito da referida palestra. Compreendemos que a Sociedade e a Policia são duas cousas aparentemente distintas, mas no fundo uma só cousa. Sociedade é soma, é conjunto de todas as classes e de todos os grupos, desempenhando cada um o seu papel, a sua missão em beneficio do interesse geral, no seu próprio benefício. Á Polícia, como órgão de ação social cabe o papel da ordem, trabalho em prol do entendimento de todos, mediante esforço que deve ser essencialmente educativo. Se acaso ocorre o mau conceito não é por culpa da sociedade e sim da Polícia mesma que se supõe o elemento mais esclarecido do meio social. Não há luta entre o verdadeiro e o falso, segundo nos mostra um ético, mas ocorrem lutas e conflitos entre o falso e o falso. Sendo a Polícia um grupo social homogêneo, com nobres e definidos encargos de proteção à pessoa humana, nenhuma outra corporação mais do que ela está no dever de projetar luz sobre a sociedade, surpreendendo-lhe os erros e fazendo-a sentir a justiça que comete tendo em desfavorável apreço um órgão que tão bons serviços lhe presta.

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